De onde as gerações realmente vieram?

É mais fácil acreditar em lentes piores, mas elas deformam o jeito que a gente vê o mundo

Estamos vivendo um momento interessante no marketing: tem cada vez mais evidência sobre o que funciona, o que não funciona e, mais recentemente, sobre como medir o impacto daquilo que sempre intuímos que é eficaz, como o branding, por exemplo. Com isso, começamos a abrir mão de algumas velhas certezas (tipo atribuição de último clique) e a trocar ferramentas e abstrações por outras mais robustas.

Em pesquisa qualitativa, a gente sabe desde sempre que a nossa escolha de linha analítica, que muitas vezes chamamos de lente (análise temática, etnografia, semiótica, etc.) muda bastante o jeito que olhamos para as coisas.

Acontece que nem toda lente ou abstração é boa e o problema das ruins é que elas moldam como a gente enxerga o mundo e distorcem o que estamos vendo.

As lentes que a gente usa absolutamente influenciam nossa percepção da realidade. Notou algum padrão ou agrupamento nessa projeção?

O nosso macroambiente é propício

Num país como o Brasil, primeiro colocado global em cair em fake news, com uma incidência altíssima de analfabetismo funcional e digital, onde mais da metade da população crê que existem curas ao câncer ocultas por interesses comerciais, e que racionaliza aposta esportiva como investimento não é surpresa que algumas ideias simplistas ou enganosas tenham muita aderência aqui. A gente tem qualidades incríveis como povo e como cultura, mas pensamento crítico realmente não é o nosso forte coletivamente.

O efeito Forer e os truques em que caímos por causa dele

O efeito Forer (ou efeito Barnum) é um viés cognitivo que faz as pessoas acreditarem que descrições genéricas de personalidade se aplicam especificamente a elas, mesmo que elas sirvam para praticamente qualquer pessoa. Sabe aquele teste estilo Buzzfeed para que te diz de qual casa você seria no Harry Potter ou qual personagem de Succession você seria, que você achou que é a sua cara? Vamos entender por que isso acontece.

Bertrand Forer, um psicólogo americano, fez um experimento muito interessante. Ele aplicou um teste de personalidade em seus alunos, informando que, com base nas respostas, eles receberiam uma análise personalizada. Depois, cada aluno recebeu uma descrição por escrito sobre sua personalidade - com o detalhe fundamental que todos receberam exatamente o mesmo texto.

A descrição era composta por frases vagas e ambíguas, mas com aparência de profundidade psicológica. Entre elas, estavam afirmações como: "Você tem uma grande necessidade de que outras pessoas gostem de você e o admirem", "Embora tenha algumas fraquezas de personalidade, geralmente é capaz de compensá-las", e "Você tende a ser crítico com si mesmo". Em seguida, Forer pediu que os alunos avaliassem, de 0 a 5, o quanto a descrição se aplicava a eles. O resultado foi surpreendente: a média das notas foi 4,26 - ou seja, os estudantes julgaram como muito precisas descrições totalmente genéricas. Entendeu agora o papinho de “geração Z busca autenticidade?” Já falei sobre isso antes.

Esse efeito também é conhecido por efeito Barnum por causa do P.T. Barnum, dono de circo e um picareta notório do século XIX, suposto autor da frase “nasce um trouxa a cada minuto”. O efeito explica pelo menos em parte porque a gente acredita em várias coisas tipo horóscopo, eneagrama e várias outras tentativas sem base científica de explicar traços de personalidade.

via Giphy

Enquanto isso, o Big 5 ou OCEAN, o modelo mais validado para estudar o assunto, é relativamente desconhecido fora da academia e de RH - o papagaio canta, periquito leva a fama?

Mas não são só as descrições vagas ou que se aplicam a todo mundo, como nos testes do Buzzfeed, que fazem essas coisas serem críveis, de acordo com estudos. O que mais faz a gente acreditar:

  • Ver o emissor como autoridade - acadêmicos, cientistas, pessoas famosas, empresas grandes, todos tem uma facilidade inata de empurrar bobagem para os outros. Diversos charlatães notórios têm mestrados e PhDs, milhares de seguidores, muito dinheiro ou todas as anteriores.

  • Quando as características mencionadas tendem ao positivo

  • Quando a gente atribui um sentido pessoal ao que estamos recebendo ou filtra a verdade do que estamos ouvindo a partir de nossas experiências individuais - se é verdade para mim é verdade para os outros?

Sabe uma coisa que a gente ouve falar diariamente e tica todas essas caixas, e ainda acrescenta o ingrediente mágico do tribalismo e rivalidade entre grupos que faz tantas coisas bombarem nas redes, do remoto versus presencial ao biscoito versus bolacha? As gerações.

Gerações: uma linha do tempo de como uma ideia mal fundamentada dos EUA engoliu nossos feeds e passou a ser considerada global

Uma linha do tempo de como gerações foram virando o recorte padrão de leitura da sociedade:

Alemanha, 1928

Karl Mannheim publicou “O problema das gerações”, que propunha agrupar indivíduos de idade semelhante por compartilharem experiências durante seu período formativo na juventude. Para ele, a idade cronológica é insuficiente - a identidade surge do envolvimento ativo nesses eventos e é daí que vem a influência em valores e comportamentos. Ele também leva em consideração diferenças fundamentais de classe, cultura e localização, sendo transparente sobre as limitações da teoria que ele propôs.

Estados Unidos, 1991.

O dramaturgo William Strauss e o historiador Neil Howe dividem as gerações nos Estados Unidos no livro Generations, em quatro arquétipos (essa própria ideia controversa é muito mais mitologia comparativa que científica - lamento fãs do Jung e galera do branding!): Artistas, Profetas, Nômades e Heróis, ligados a quatro gerações vivas no momento no país - Silent, Baby Boomers, X e Millenials. O próprio termo Millenial é uma criação do Neil Howe.

Em cima dessa base não muito sólida, eles esticam esses mesmos arquétipos para explicar o passado e para adivinhar o futuro, sugerindo que eles se repetiram e vão continuar se repetindo ao longo da história americana - um determinismo histórico simplista e pretensamente profético, mais Nostradamus que Hobsbawm. O subtítulo do livro é “The history of America’s future from 1584 to 2069”.

Se isso te soa mais como o Wheel of Time do que uma teoria que realmente explica o que tem a ambição de explicar, você não está sozinho. Tem uma análise crítica bem detalhada discutindo as limitações e omissões da teoria aqui - os mais politizados vão notar que o Steve Bannon é um dos defensores das ideias deles.

Estados Unidos, fim dos anos 90.

A mídia americana abraça a ideia de gerações e logo, a estereotipação e críticas à juventude fantasiados de preocupação com o futuro, recorrentes historicamente, estampam capas de revistas como a Time.

Mundo afora, anos 00 - o que era só dos EUA vira global

Num dado momento, com a força que o marketing tem como indústria nos EUA, a ideia de gerações é exportada como se aplicasse ao mundo inteiro. Por causa da globalização (na época, uma força vista como imparável, hoje a história é diferente) e da internet, a promessa era que nossos grandes marcos históricos e circunstâncias de vida seriam mais compartilhados dali em diante, algo que não é bem verdade nem nos EUA…

Nos anos 2020, as críticas finalmente começam a surgir

As generalizações enormes feitas em cima de recortes minúsculos, envernizados por carrosséis e PPTs com design lindo e ganchos mentirosos, viraram uma constante nas redes. Muitos repetindo exatamente as mesmas baboseiras que foram ditas sobre os Millenials nos anos 2010 sobre a geração Z, que virou a bola da vez: “buscam autenticidade”, “valorizam autoexpressão”, “são nativos digitais”, “são mais conscientes” - não coincidentemente, traços característicos da juventude como um todo, não de uma geração específica.

Diversos estudiosos e instituições começam a publicar estudos e críticas sobre o assunto. Em 2021, um grupo de demógrafos mandou uma carta aberta para o Pew Research Center, talvez a organização mais responsável pela pela popularização da ideia de gerações no mundo e uma das maiores autoridades em opinião pública nos EUA, falando que era um critério arbitrário, não científico e que atrapalha pesquisas sérias feitas sobre o assunto. O instituto cedeu e se comprometeu a eliminar o critério quase completamente, com exceção a casos em que gerações diferentes possam ser comparadas na mesma fase da vida - e eles são uma das poucas organizações no mundo que tem dados históricos suficientes para fazer esse tipo de comparação. Se eles que foram os grandes propagadores abandonaram porque as críticas são legítimas, a gente está esperando o que?

De HBR, passando por BBH Labs e Mark Ritson, as críticas começaram a sair das ciências sociais e chegarem ao mercado. Um ponto em comum a todas é que as similaridades intrageracionais são poucas e que a insistência nelas cria estereótipos falsos e factóides. O da HBR inclusive fala que os estereótipos mudam nosso comportamento.

Aqui no Brasil, a Superinteressante publicou matéria esculachando, mas o silêncio no mercado de pesquisa e insights é ensurdecedor, com raríssimas exceções, incluindo uma pessoa da minha rede que sintetizou o problema brilhantemente: “Pessoas não nascem em safras.” Ninguém quer ser o chato que estraga a brincadeira da galera? O cliente tem sempre razão? Topa tudo por engajamento?

Será que ainda dá para dar o benefício da dúvida e tratar como ignorância, não malícia, a insistência em um critério impreciso, anticientífico e arbitrário?

O problema é que tem uma verdade humana dura aqui - a gente só condena pseudociência e fake news quando são as que os outros que acreditam e quando a gente não está emocionalmente ou financeiramente investido nelas ou quando elas não fazem parte da nossa identidade. É assim que nascem as teorias da conspiração. Tem até um episódio dos Simpsons sobre isso - a sensação de pertencimento e comunidade pesa. Tivemos uma demonstração global desse fenômeno com a explosão do antivacinismo durante a pandemia.

Por isso que é fundamental entender bem de viéses cognitivos e falácias para quem é pesquisador, estrategista e marketeiro: para reconhecer falhas no próprio raciocínio. Será que as gerações são o terraplanismo de estimação do marketing?

“Ligue djá e compre meu curso para entender o futuro da gen Z”

Por que abandonar gerações como critério?

1 - A premissa central trata o contexto histórico como muito mais universal e determinante do que é na verdade. Ironicamente, o Mannheim que foi um dos pioneiros levou essa limitação em consideração, mas a maior parte do que vem depois não.

2 – A gente deixa de lado critérios muito melhores, com décadas de pesquisa séria por trás e que focam justamente no que muda menos. Adolescência, meia idade e outras fases da vida são estudadas cultural, social e psicologicamente em campos consolidados, como a psicologia do desenvolvimento. Ao contrário de nas gerações, as faixas etárias são mais fixas. Isso porque estão ligadas a coisas como o desenvolvimento do cérebro, a socialização, o papel social em diferentes etapas da vida, que são coisas que variam muito menos com o tempo e, por isso, são bem mais perenes. Mas a gente ignora tudo isso para ouvir o Zé da Couve, Gen Z specialist do LinkedIn, cujo repertório gira basicamente em torno do círculo social dele. Mas ele faz uns carrosséis tãão legais!

3 - Atribui a gerações coisas que são características de fases da vida. Somos pessoas quase sempre muito diferentes nos 20 e nos 40 anos. Toda essa leva de pesquisas onde os recortes mostrados são os geracionais induzem quem lê ao erro. Por exemplo, pintando busca por estabilidade e aversão a risco como coisa de X e Boomer (não de gente mais velha - eles eram assim nos 20 e poucos?) ou ênfase no idealismo na geração Z - vão continuar iguais quando forem mais velhos?

4 - É um critério especialmente ruim para entender crianças e jovens. Por exemplo, geração Z em 2025 com o critério que o Pew Research usa, tem de 13 a 28 anos - ou seja, vai de quem ainda está na puberdade até a idade média em que as mulheres no Brasil tem o primeiro filho! Que similaridades pode ter um recorte desse tamanho em uma fase da vida em que cada 2-3 anos a gente já mudou muito? Sem falar em renda, educação, cultura, estilo de vida, etc..

Na contramão, trabalhando com uma empresa líder global em entretenimento infantojuvenil, me chamou muita atenção o nível de detalhe que eles tinham na segmentação dos produtos por fase da vida (primeira e segunda infância, tweens, adolescentes, jovens adultos, etc.), eventualmente com subdivisões menores, sempre destacando o que faz cada período ser particular, questões cognitivas e comportamentais, num nível de detalhe incrível que sem dúvida ajuda a explicar o sucesso de quase tudo que eles fazem. Nuances importam!

5 - Natividade digital é um conceito furado que a ideia de gerações potencializa, ignorando o impacto do poder de compra e outras variáveis na adoção de tecnologias e partindo sempre do princípio que os mais velhos são necessariamente menos aptos ou interessados no uso das novidades - etarista e preocupante num mundo que envelhece a passos largos, inclusive o Brasil.

6 - Se a gente está falando de marketing, o critério primordial é a relação com a categoria, que no geral é o que melhor prevê como as pessoas vão agir. Quer dizer, se a gente quer aprender como as pessoas consomem café, as coisas mais importantes deveriam ser as particularidades dessa relação: frequência, que tipo compram, como preparam e assim por diante. Se eu prefiro cafeteira italiana do que filtrado, é improvável que a geração a que eu pertenço tenha qualquer coisa a ver com isso.

Até quando quem controla orçamento de publicidade, estratégia e marca vai bater palma pra maluco dançar e tratar grupos de milhões de pessoas como se ano de nascimento fosse destino manifesto e como se nossos valores e escolhas fossem só produto do contexto histórico? Até quando o pessoal de marketing, de agência e, infelizmente, até de pesquisa - que deveria estar liderando esse debate - vai seguir dizendo que é 'data driven' enquanto insiste num recorte que é, comprovadamente, um dos piores para entender o ser humano em grupo? Num cenário de tantas mudanças, não seria mais racional focar no que muda menos e tem mais conhecimento consolidado?

Isso sem falar em como essa insistência pune honestidade intelectual, que deveria ser uma característica mais incentivada em quem trabalha no nosso mundo. Se a gente tira da sala quem é transparente sobre os pontos cegos e limitações dos métodos, quem sobra?

Se você está se sentindo mal depois de ler esse texto, talvez pensando em generalizações que fez, decisões que tomou ou estudos em que você se envolveu - não se sinta só! Deixa eu te estender a mão. Desde criança sempre fui curioso sobre personalidade, comportamento, cultura. Nas viagens longas de carro, eu interrogava os adultos sobre como eram as pessoas dos outros países e sobre como o futuro ia ser. No ensino fundamental, devorava livros de mitologia e astrologia e, em um projeto para a feira de ciências da escola, minha apresentação era fazer mapa astral das pessoas usando um laptop emprestado. Não, nenhum professor levantou objeção sobre falar de mapa astral na feira de ciências - que vergonha! Eu trabalho com pesquisa há mais de 20 anos e eu também tive minha fase de achar que gerações poderiam ser um ângulo interessante para entender movimentos de consumo e fiz apresentações em clientes sobre o assunto várias vezes, bem mais cedo na minha carreira. Só que eu nunca parei de estudar o assunto (e procuro ler sempre pontos de vista contrários ao que eu acredito) e aqui admito prontamente: eu estava errado antes! Porque evoluir é isso mesmo, né? Mudar de ideia quando a gente encontra argumentos e evidências melhores.

Por outro lado, se você discorda radicalmente de mim, adoraria ouvir seus argumentos a favor, os comentários estão abertos - mas para que a gente tenha uma conversa justa, traga dados. Não venha de faca em briga de pistola.

via Giphy

Para concluir: já sabe - na próxima vez que tentarem te vender um olhar baseado “na lente geracional”, lembra que lentes, literais ou metafóricas, moldam o que a gente vê e podem criar distorções terríveis. E no nosso contexto de sobrecarga informacional, ver mal é um luxo que a gente não pode se dar.

Se for só por diversão, talvez valha mais a pena ler a Susan Miller: ela é uma contadora de histórias brilhante, só que você não vai usar isso pra justificar decisões estratégicas sobre marcas ou pessoas. E mais: ela sacou que ninguém volta para conferir se a previsão do mês passado bateu ou não - notou a semelhança com alguns conteúdos que você lê por aí? Está na hora de separar entretenimento de entendimento.

Mas Rodrigo, todo mundo usa. Você quer que eu pare? Que eu corrija os outros?

Um passo de cada vez. Já acreditamos que a Terra era o centro do universo, já achamos normal dirigir sem cinto e fumar (ou ser defumado) em ambientes fechados. A mudança começa com uma dúvida, depois uma conversa, um argumento, uma escolha. Esse texto é só um convite. Igual quando a gente, com toda a calma, explica o valor de uma pesquisa qualitativa para quem pergunta “mas dá pra confiar com tão poucas pessoas?” E como diria sua mãe: você não é todo mundo. Por isso chegou até aqui. Obrigado por ler até o fim!

Reply

or to participate.