Estamos normalizando a desonestidade?

Será que a superexposição ao jogo sujo pode estar afetando nossa bússola moral?

Muitas notícias recentes fazem a gente pensar se não estamos em uma trajetória de falência moral total e irremediável:

  • Golpes digitais e bancários atingindo um quarto dos brasileiros. Quantas vezes você já recebeu ligações falsas do “banco” falando de uma despesa suspeita em sua conta ou cartão? Alguém já se passou por você no WhatsApp?

  • Os “Narcocrentes” - no Brasil temos um histórico forte de sincretismos de crenças ao longo de nossa história, mas a conciliação entre esses dois mundos é das mais bizarras. E a gente achando que a Idade das Trevas tinha ficado para trás!

  • Alguns políticos e pessoas de negócios com comportamento cada vez mais indistinto de líderes de culto, onde todas as qualidades são divinas, todas as falhas são relativizadas e o controle da narrativa é ferrenho, especialmente quando as coisas não estão indo bem. Já viu o documentário do Netflix “Como ser líder de um culto?” Se não viu, deveria!

  • O incentivo perverso das promessas exageradas do mundo tech, onde parece que as histórias de pescador de bilhões de dólares (ou trilhões!) são meio que necessárias para justificar o volume de capital levantado. Como fica esse jogo agora que está acontecendo uma injeção maior de dinheiro público?

  • Uma virada para a lei da selva na geopolítica e para as bravatas como modus operandi padrão e vencedor nas eleições, em vários lugares do mundo - essa acho que não precisa de link, né?

  • Uma das capas da Economist desse mês - com tudo que está acontecendo no mundo, esse tema ser central o bastante para ser matéria de capa nos diz algo sobre o estado das coisas. A matéria é sobre como a indústria dos golpes pode estar superando o tráfico em valor de mercado.

Algumas delas são especificamente relacionadas com as dinâmicas das mídias sociais:

O truque mais velho do mundo continua funcionando, aparentemente.

No nosso mundo de pesquisa, estratégia e insights tem malandragem também…

  • Estudo de social listening com número e % de menções como se tivessem sido perguntadas diretamente e como se fossem representativas estatisticamente, induzindo quem lê ao erro. Dados de estudos quantitativos do mesmo período contam uma história bem diferente em casas

Universo do estudo: a bolha que mencionou suas metas espontaneamente nas redes nesse intervalo de tempo específico em que essas menções aconteceram. “Já não é mais prioridade“ para quem?

  • Estudo de tendência que entrevista os amigos moderninhos e generaliza para a humanidade ou que assume que porque acontece em NY, vai acontecer aqui, como se o abismo da inovação não fosse uma realidade para tantos produtos e comportamentos e como se evidência anedótica e sinal fraco fossem a mesma coisa.

Parece familiar? Via Edmond Lau

Quem quiser se proteger dessas vai ter que aprender mais sobre metodologia de pesquisa e viéses ao invés de simplesmente comprar marca ou aceitar recomendação de colega às cegas. Talvez a galera falando que pensamento crítico vai ser a habilidade mais fundamental pós-IA tenha razão.

Quatro vetores na direção errada: autocomparação ampliada, o poder do mau exemplo, visibilidade a todo custo e impunidade

Será que estar exposto constantemente ao sucesso alheio, independente se fictício ou verdadeiro, de gente que antes estava completamente fora do nosso radar, está fazendo mais pessoas irem para o vale tudo?

Essas flutuações de humor tem tanto efeito prático em mercados como o financeiro que existem índices como o Fear and Greed da CNN Business que existem justamente para tentar medir o comportamento de manada guiado por ambas emoções. Como sabiamente disse o Warren Buffet, quando vemos pessoas que consideramos menos inteligentes do que a gente ganhando mais dinheiro que nós, isso causa um contágio comportamental e irracionalidade, e mesmo pessoas esclarecidas acabam fazendo grandes bobagens.

Será que a promessa de dinheiro fácil e rápido de mercados como bets, dropshipping, marketing de afiliados e algumas variedades de infoprodutos e criptomoedas estão fazendo a gente mais ganancioso? Impactando a cultura popular em algum nível ela já está (não abra esse link no escritório!).

O problema da visibilidade ampliada da picaretagem e do dinheiro supostamente fácil é que pode gerar em quem é honesto ou está fora desse jogo uma sensação de estar ficando para trás ou não estar fazendo o bastante.

Uma das coisas que caracteriza os tempos que vivemos é a confusão de visibilidade com autoridade. Será que algumas pessoas altamente visíveis estão ficando “grandes demais para falirem” como os bancos em 2008, porque em algum nível a visibilidade sempre é monetizável independente das polêmicas e atrocidades em que se envolvam? A impunidade também é um incentivo poderosíssimo para comportamentos ruins, tanto para quem já os faz quanto para quem está pensando em fazer.

Será que como consequência disso, perseguir a visibilidade a todo custo virou parte do espírito dos nossos tempos por ser mais e mais vista como a forma mais rápida de fabricar credibilidade e transformar em dinheiro?

Aproveitando que a nostalgia dos anos 00 tá com tudo. A versão 2025 seria get followers…?

Um dos jeitos mais interessantes de mapear tendências é ver se novos comportamentos estão nutrindo mercados que sustentam esses comportamentos, medindo por proxy, como dizem os estatísticos. Um exemplo que cabe aqui: o aluguel de carros de luxo, com pacote completo de filmagem e fotografia, está nadando de braçada - é um sinal que a busca de prova social usando relojão, casa quadrada estilo condomínio fechado e esse tipo de carro tá em alta?

Agora dando um passo atrás, será que isso é verdade se olhamos para os grandes arcos da História e para os dados?

Como é a bússola moral dos brasileiros, historicamente?

Já falei aqui antes sobre a confiança interpessoal no Brasil estar entre as mais baixas do mundo de forma muito consistente - com vários desdobramentos práticos, todos indesejáveis - tem um paper do BID muito legal sobre como isso afeta negócios e gestão pública e certamente afeta nossas relações.

Nossa confiança na classe política é consistentemente uma das mais baixas do mundo e isso não é novidade para ninguém, o problema é que “o que está embaixo é como o que está no alto”, como disse Jorge Ben Jor e, antes dele, os herméticos. Tem estudo que mostra, ainda que em outros países, que pouca confiança nas instituições leva a uma maior tolerância à corrupção e essas duas coisas tem causalidade mútua, ou seja, uma coisa alimenta a outra.

Tem um monte de coisas que a gente considera dentro de uma zona cinza moral ou coisas que “todo mundo” faz que seriam absolutamente inaceitáveis em outros países:

  • precificar coisas de forma diferente com nota ou sem, uma naturalização da sonegação

  • fazer carteirinha falsa para pagar metade em show, uma falsidade de documento particular ou ideológica socialmente aceita

  • pagar flanelinha, que é ser conivente com um tipo de extorsão muito mal disfarçada

Todas essas coisas, entre vários outros comportamentos parecidos, sugerem que somos relativistas e não absolutistas moralmente. Tem sempre um outro que vemos como tendo vantagens injustas contra nós que usamos para justificar nossos piores atos: o Estado que nos tira tanto nos dando tão pouco em troca, o empregador que exige mais do que o combinado mesmo nos pagando tão mal, a empresa gigantesca malvada que passa a perna nos clientes - um efeito cumulativo da confiança interpessoal e institucional baixa. Ninguém é vilão na própria narrativa, mas ao mesmo tempo a sensação de desonestidade é onipresente - que matemática é essa? Isso sem falar na figura do malandro, que é meio que um mito fundacional do Brasil.

Nós e os outros. Via Tom Gauld.

Além dessas coisas, na frente dos valores, os brasileiros são razoavelmente consistentes em algumas coisas:

  • somos altruístas, mas punitivos: queremos que os outros sejam ajudados e tenham oportunidades, mas se cometem erros ou crimes queremos punições duríssimas. O que fica implícito é que não acreditamos em segunda chance.

  • ao mesmo tempo que somos muito descrentes da classe política, a gente espera que o Estado resolva um monte de problemas. Como conciliar isso?

A gente parece estar também numa longa transição de uma moral católica pautada em parte pelo “mais fácil um camelo passar pelo fundo da agulha do que rico ir para o céu” para um caminho diferente, pautado pela teologia da prosperidade e do número crescente de evangélicos e também pelo número cada vez maior de pessoas não afiliadas religiosamente. Essa é uma pauta quente nas Humanidades e que afeta coisas como a forma que a gente lida com o sucesso, o dinheiro e com políticas públicas.

Será que estamos caminhando para uma nova “moral protestante à brasileira”, mais adaptada a um contexto cultural mais “cada um por si” e individualista do que o em outros países predominantemente protestantes, mas desenvolvidos?

Um contraponto forte: a ideia de declinismo moral é recorrente e parece que não se sustenta

Acontece que essa ideia de declinismo moral, que é entender que nossos valores morais coletivos estão piorando, é recorrente ao longo de décadas e pode ser uma ilusão coletiva, um outro assunto que eu já mencionei por aqui.

Dois pesquisadores de Harvard e Columbia fizeram um estudo grande baseado na análise de 177 pesquisas de opinião nos EUA (feitas desde os anos 40!) e 58 ao redor do mundo, inclusive no Brasil e descobriram que essa sensação de piora é constante desde os anos 60 sem sinais claros de uma piora real.

Mas não é tão simples - um outro pesquisador de ilusões coletivas que conduziu diversos estudos, Todd Rose, afirma que as ilusões de um determinado grupo viram opiniões privadas da geração seguinte.

Mas e agora, tá acontecendo mesmo?

Tem muitos fatores aqui que podem mesmo estar nos empurrando nessa direção, mas os contrapontos também são muito fortes, em um assunto que é particularmente difícil de medir até porque conseguir que pessoas admitam a própria desonestidade publicamente e o efeito da dos outros sobre elas não é nada simples. É bem difícil ter uma resposta definitiva e muitas vezes, entender gente é assim.

Mas o aprendizado mesmo aqui é, se a gente usa o dado comportamental fácil e barato (mídias sociais) só que com um viés de amostragem gigantesco, a gente corre um risco enorme de tomar o todo pela parte e tomar decisões toscas como resultado, um erro cada vez mais comum em muitas empresas - a malandragem com social listening que eu apontei antes no texto tem tudo a ver com isso.

O que é certo é que a gente precisa, como executivos e estrategistas, parar de tratar o que acontece nas redes como representativo de nossa realidade coletiva, por mais que seja de fato capaz de nos influenciar. E entender que muitos de nós de marketing e comunicação fazemos parte de uma bolha “cronicamente online” totalmente descolada do resto do país, o que faz com que a gente ouvir a maioria silenciosa seja cada vez mais importante.

Essa mesma dinâmica da visibilidade a todo custo cria incentivos perversos para que se publique coisas muito impactantes mas extremamente mal embasadas, tipo “geração Z não bebe mais” ou “geração Z trocou a busca do Google pelo TikTok”. Não é mais só sobre ter acesso à pesquisa, mas saber como avaliar origem e qualidade desses dados e processos e fazer o que a gente que é pesquisador já faz (ou deveria fazer) o tempo inteiro - imaginar as inúmeras formas como a gente poderia estar errado antes de abrir a boca.

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