A ascenção dos relacionamentos sintéticos

Como a presença maior de relações mediadas, parassociais, transacionais e sintéticas afeta nossa sensação de solidão e isolamento?

Muito se falou sobre os efeitos imediatos da pandemia: na saúde mental, no consumo digital, na reinvenção do trabalho. Mas passados alguns anos, ainda tem impactos mais profundos desse período sendo revelados. Um deles parece especialmente transformador: a erosão das nossas habilidades relacionais e, talvez mais grave, da nossa disposição para o convívio humano “orgânico”.

A pandemia não criou a solidão, mas parece ter acelerado um movimento de retração social que já vinha ganhando força em várias partes do mundo. Agora, o que vemos é mais do que uma preferência por home office ou por maratonar séries no sofá ao invés de sair para encontrar os amigos. É uma reorganização dos vínculos: com menos presença física, menos tolerância à ambiguidade e à frustração. E também mais relações mediadas, transacionais, substitutivas e, mais recentemente, sintéticas - são causa, consequência ou nenhum dos dois?

Como está o isolamento social e a solidão mundo afora?

Esse parece ser um fenômeno bem global, ainda que, como tudo, com manifestações bem diferentes em cada cultura.

Asia

  • No Japão, a reclusão social extrema é um problema crônico, mas não novo. Os hikikomori definidos como pessoas que não saem de casa por pelo menos seis meses sem condição psiquiátrica subjacente, somam cerca de 1,46 milhão entre 15 e 64 anos, perto de 2% do total segundo o governo japonês. E já tem pesquisa olhando para isso como fenômeno global, não exclusivamente de lá. A vida social noturna, muito ligada culturalmente ao trabalho, também deu uma murchada, por vários motivos, inclusive econômicos.

  • Na Coréia do Sul, a situação também chama atenção. Um relatório do Ministério da Saúde de 2023 revelou que mais de 5 % dos jovens entre 19 e 39 anos vivem em isolamento social, muitos sem sair de casa por semanas ou meses.

  • Na Índia, aconteceu uma diminuição importante do número de domicílios multigeracionais (34 % para 27 % projetados, Censo deles), um pilar histórico da cultura indiana, com literatura acadêmica que liga isso a aumento na solidão entre idosos. Mas também tem outros estudos por lá falando sobre índices mais elevados de solidão entre jovens e adolescentes.

  • Na China, o envelhecimento populacional e o grande desequilíbrio entre a população masculina e a feminina tem um peso grande nesta pauta. 28% dos adultos mais velhos se sentem afetados. Por outro lado, entre os jovens, os serviços de companhia paga (para ir às compras, jogar, bater papo, entre outras coisas) vêm ganhando popularidade.

Europa

  • Em Paris e Barcelona, estudos sugerem que o fluxo de pedestres aos fins de semana segue abaixo do pré-pandemia, indicando uma possível mudança na disposição para o convívio público.

Estados Unidos

E no Brasil?

Nossa musculatura social está atrofiando, mas é só efeito colateral do digital?

A Esther Perel, uma psicoterapeuta especializada em relacionamentos íntimos, já está falando sobre atrofia social há algum tempo. Para ela, é a perda de habilidades relacionais básicas, como escutar com atenção, tolerar ambiguidade ou lidar com frustração - derivada de um contexto em que relações humanas se tornam mais escassas, mediadas ou evitadas. Para ela, a pandemia acelerou essa erosão, mas não foi a única causa: a hiperconexão digital, o culto à eficiência e a medicalização do desconforto (com respostas rápidas para qualquer desconforto emocional) já vinham criando uma cultura de baixa tolerância à alteridade. Segundo Perel, estamos menos expostos ao conflito interpessoal cotidiano e, por isso, menos preparados para os desafios de qualquer vínculo humano “puro”.

Para não cair em narrativas simplistas onde existe só um culpado, seja a cultura, mídias sociais, a pandemia ou sei lá o que for, vamos dar um zoom out?

É um fenômeno multifatorial, mas que invariavelmente passa por tempo e dinheiro

Não dá para tirar a economia dessa equação. A crise do custo de vida, intensificada no pós-pandemia por inflação persistente, estagnação salarial e precarização do trabalho, pesa na retração social - mesmo em países ricos como a Australia, onde um terço da população corre atrás de um segundo emprego para conseguir fechar as contas. Em diversos lugares do mundo, sair de casa para encontrar amigos, frequentar espaços culturais ou apenas circular na cidade está esbarrando mais no custo. Se conviver precisa de planejamento e a espontaneidade desaparece, a vida pública murcha.

Um estudo recente das Nações Unidas mostra que as finanças são uma das barreiras principais a ter filhos em muitos países. Tem estudo científico bem recente ligando a mudança do lugar do cachorro na sociedade à queda da natalidade, em especial no Ocidente e na Ásia rica, o que pode também sinalizar vínculos substitutivos de certa forma. Já falei também sobre a importância crescente dos dinkies no Brasil num conteúdo mais curto.

O tempo tem uma dimensão importante também, tanto pelo lado filosófico (o que a gente prioriza) quanto pelo lado comportamental (como de fato a gente o gasta).

O Byun-Chul Han, filósofo sul-coreano, fala do tempo nos dias de hoje como uma alternância entre ciclos de autoexploração e burnout - o cansaço constante e generalizado vem em parte daí. Um outro filósofo menos conhecido, Will Davies, fala sobre como a competição se tornou também uma característica fundamental de indivíduos, não só de mercados, e de como a lógica da eficiência econômica vem sendo aplicada a domínios fora do mercado, inclusive a nós mesmos, tornando o tempo um recurso a ser explorado até o limite - com stress crônico e ansiedade como subprodutos.

Olhando o tempo pelo lado do uso, é fácil reconhecer alguns padrões. A passadinha de 5 minutos no Instagram que logo viram 20 parece mais atrativa que a ligação para o amigo que pode estar ocupado ou precisando desabafar ao invés de ouvir o seu desabafo, os rolês cancelados, a dificuldade maior de marcar coisas com as pessoas, círculos de amigos diminuindo de tamanho… mas ao mesmo tempo o Digital Wellbeing do Android ou o Screen Time do iOS nos delata - como falta tanto tempo para algumas coisas e sobra para outras? Se a gente se sente mais e mais cansado e soterrado em responsabilidades e se sentindo obrigado (várias vezes de forma auto imposta) a entregar e performar o tempo inteiro, fica mais fácil de justificar essas indulgências e distrações, já que a forma como a gente sente a passagem do tempo depende do contexto e é totalmente subjetiva. O problema é que o efeito cumulativo dessas escolhas mais convenientes pode ser a fragilização de nossos vínculos e como consequência, de nós mesmos - também já falei disso antes. 

Muitas vezes é o humano que frustra - o chefe, o cliente, o colega de trabalho, o parceiro, o familiar, o filho, então vale a pena pensar que a indisposição de lidar com a rejeição, o silêncio, a agressividade e etc. do outro pode ser um motivador forte para buscarmos alternativas mediadas ou onde a gente tenha alguma ilusão de controle - o que sugere que a gente pode estar mais evitativo, por isso mais solitário. Então para ir além dos sintomas e do autodeclarado, é fundamental que a gente olhe quais mercados esses comportamentos estão afetando. Com que mais isso se relaciona?

A normalização dos relacionamentos íntimos transacionais - está acontecendo?

A pauta dos relacionamentos sugar deu uma esfriada na mídia, depois de ser até tema de novela em 2019, mas não quer dizer o mercado sumiu ou estagnou. Uma olhadinha rápida em números no Brasil:

  • As 3 maiores plataformas intermediadoras desse tipo de relacionamento no Brasil por usuários são MeuPatrocínio (15,7 milhões), Universo Sugar (2,5 milhões) e a SugarDaddyMeet (1 milhão), a única internacional. Dependendo do nível de sobreposição entre os usuários das plataformas, estamos falando de entre 7 a 9% da população do país!

  • A primeira coisa que chama a atenção é a grande sobreoferta de sugar babies (termo que se aplica a homens e mulheres) em relação aos daddies e mommies - ou seja, uma disposição muito maior de pessoas em oferecerem companhia e eventualmente sexo em troca de dinheiro do que em pagar por isso, com proporções diferentes dependendo da plataforma

  • O estereótipo nos faria pensar em homens de meia idade com mulheres muito mais jovens, mas parece que a história não é bem essa - no MeuPatrocínio a idade média das babies é 27 anos e dos daddies, 37. Entre os últimos, a renda mensal média é de 141 mil e o patrimônio pessoal declarado, acima de 13 milhões de reais.

  • 83% dos sugar daddies registrados na plataforma no DF são casados.

E aí? É uma transformação digital do vínculo de amante com um service level agreement melhor delineado? Um modelo de trabalho sexual com fronteiras menos rígidas? Uma tentativa de eliminar ambiguidades? Uma visão utilitarista ou niilista dos relacionamentos? Mais uma ruptura com o ideal do amor romântico? Fora do Brasil, já tem gente estudando

Relacionamentos parassociais - do acesso pago ao privado à intimidade simulada

Um relacionamento parassocial é um vínculo emocional unilateral com alguém que não retribui ou reconhece esse envolvimento. Já escrevi antes sobre os relacionamentos parassociais com figuras públicas das redes e os problemas de tratar essas pessoas e esses comportamentos como representativos da sociedade como um todo e de usar as mídias sociais como termômetro da sociedade. Também já falei sobre as ilusões coletivas, que é como a gente muda nossa forma de enxergar o mundo a partir do que é visto como consenso ou opinião dominante, ovelhinhas influenciáveis que somos, o que ajuda a explicar o barulho enorme dos bebês reborn nas redes (outro vínculo parassocial!), apesar do tamanho do mercado ser bastante reduzido.

O gráfico que mostra o OnlyFans como a empresa de maior faturamento por funcionário do mundo circulou por toda a imprensa tech recentemente. Mais além de ocupar o vácuo deixado pela irrelevância das revistas em que o atrativo era a nudez de pessoas públicas, criadores de conteúdo, incluindo muitas subcelebridades e esportistas como antigamente, mas também as estereotípicas thirst traps do Instagram e TikTok, acharam uma mina de ouro e são os intermediários que mais estão ganhando. No Brasil, é um mercado tão pujante que temos um player local, o Privacy, com mais de 16 milhões de usuários, que pode já ter superado seu concorrente mais conhecido em volume de tráfego, e já se expandiu para outros países da América Latina.

O que os números não mostram é o que os usuários buscam nos serviços - vai além das imagens sexuais ou de pagar para ter algo para ter algo de uma pessoa idealizada, como foi com a água da banheira da Belle Delphine ou mais recentemente, com a Sydney Sweeney. Os criadores mais rentáveis falam sobre um trabalho que é fundamentalmente emocional. Tanto é verdade que a transformação dessas interações em intimidade simulada em escalavirou indústria, com call center e tudo - numa zona de fronteira entre o parassocial e o transacional. E claro, o modelo já foi tropicalizado e adaptado para o nosso mercado, inclusive usando modelos que não existem criadas por IA. Falando nisso…

A próxima fronteira já está dando as caras por aí - é tirar o humano da equação completamente.

A ascenção dos relacionamentos 100% sintéticos

O Sam Altman em um evento recente falou sobre como os mais jovens já usam sua ferramenta para tomar grandes decisões de vida. O Mark Zuckerberg quer resolver a questão da solidão com “amigos IA”.

Tem um corpo crescente de pesquisadores científicos tratando nossos “relacionamentos” com IAs como parassociais, explorando essa assimetria e os desdobramentos problemáticos: criação de hábitos, investimento emocional, apego, dependência, delírios

É fácil a gente confundir o que está acontecendo com uma dessas coisas nostálgicas que pessoas mais velhas tentam convencer as mais jovens que “era melhor antes”. Só que a comparação feita por alguns tecno-otimistas com aparelhos de GPS e calculadoras não são apropriadas - nosso senso de direção e capacidade de cálculo mental são infinitamente menos críticos para nossa sobrevivência e prosperidade como humanos do que nossa capacidade relacional.

Será que não estamos em uma reprise do contexto de “paixonite” (inclusive no sentido de idealização) que tivemos no princípio das mídias sociais onde tudo era revolucionário, maravilhoso e grátis, até que a gente coletivamente descobriu, de formas às vezes dolorosas, que o produto somos nós? A gente já sabe o que acontece quando a hora de rentabilizar a base chega

O número maior de postos de trabalho intelectual e a adoção dos carros e eletrodomésticos, entre outras coisas, diminuíram nosso esforço físico diário e tornaram muitos de nós sedentários por padrão. A escala e facilidades dos alimentos industrializados transformaram a manifestação típica da pobreza de desnutrição para obesidade e criaram desertos alimentares mesmo em áreas próximas aos grandes centros. É claro que o acesso ampliado é benéfico, mas não dá para subestimar o peso da conveniência e de custos mais baixos em nossas escolhas.

E se a combinação de interesse econômico, escala e conveniência tornar os vínculos (parcial ou totalmente) sintéticos dominantes o suficiente para tornar a decisão de construir intimidade orgânica e desintermediada com pessoas de verdade um esforço consciente, igual a gente se obriga a fazer atividade física e comer menos tranqueira, deliberadamente escolhendo caminhos com mais fricção porque entendeu que fricção de menos tem consequências terríveis no longo prazo?

Do futuro do pretérito, para lembrar que conveniência às vezes é demais. Via Pixar, em 2008!

E se isso já estiver acontecendo em algum grau? Se o mar de AI slop que já está tomando o Linkedin e o Instagram tanto com muletas narrativas tipo ”Não é uma mudança simples — é uma verdadeira revolução!” falando de algo tipo Labubus, quanto com o papagaiamento sem fim de lugares comuns é um indicativo do nosso futuro próximo como sociedade, a coisa vai mal, nessa corrida maluca que é pedir ajuda para uma máquina para sermos validados socialmente por uma outra. A ameaça não é o uso, é a inviabilização das alternativas como mercado.

Namoradas IA não são namoradas de verdade, terapeutas IA não são terapia de verdade, personas sintéticas não são seres humanos de verdade, que não usam nem compram produtos de verdade. Nossa disposição em substituir nossas relações por simulacros toscos, ou por incapacidade de lidar com as frustrações que lidar com o outro nos impõe ou por conveniência, sugere que a coisa que a gente realmente deveria temer não é a fantasia distópica da dominação das máquinas, mas que a gente fique cada vez mais maquinal, robótico, obcecado por eficiências que esvaziam o sentido das coisas e menos capaz de ler o contexto a olho nu.

Se o contexto é esse, e se mais marcas fossem mais viabilizadoras de conexões humanas sem filtros e menos só capturadoras de atenção? Será que não é melhor a gente se preparar para esse futuro agora, ao invés de ficar em negação até o último momento e acabar como vilão? Pode ser grande como foi a campanha da Vivo, mas também pode ser pequeno e sensível como a do supermercado holandês que fez uma fila separada para quem quer bater papo com o caixa, no geral pessoas mais velhas e sozinhas.

Para finalizar, a recomendação do mês é uma análise muito legal do Derek Thompson sobre esse assunto, que pinta o problema da solidão mais como uma pré disposição social menor e em parte, voluntária - bate com o que eu falei antes sobre ser evitativo. Mas vale reforçar que ele está falando do contexto americano!

Obrigado por ler até o final e até mês que vem!

Reply

or to participate.