A economia da atenção está saturando?

O que acontece quando entendemos coletivamente que o preço da distração constante é nossa sanidade?

“Brain rot” como palavra do ano em 2024 é só a ponta do iceberg.

Existem inúmeros relatos de pessoas com mais dificuldade de se concentrarem e manterem sua atenção em leituras extensas e aprofundadas, ou mesmo assistindo filmes. No Brasil, estamos lendo menos - um estudo recente mostra que no ano passado, a proporção de leitores é a menor registrada desde 2007, o primeiro ano em que foi feito. Nas salas de aula, esses relatos se repetem em uma frequência ainda maior.

Como está cada vez mais difícil prender a atenção, cada vez mais a gente precisa apelar mais para conseguí-la, seja usando uma intensidade crescente de estímulos simultâneos (que é, na verdade, a origem da expressão brain rot no contexto digital), usando emoções fortes ou nossos piores instintos - clickbait, ragebait e as clássicas promessas exageradas de emancipação e riquezas - tanto que até os incumbentes mais analógicos dessas promessas estão incomodados.

Por outro lado, o sucesso algorítmico ganhou uma importância tão exacerbada que se especula que seja um grande fator para uma homogeneização estética e criativa em design de interiores, varejo, música (tanto ficando mais formulaica e repetitiva quanto mais relegada a uma condição de som ambiente) passando pelo blanding e até pela aparência física. Alguns já pintam esse contexto como uma crise da criatividade.

Diferentemente de pânicos morais que aconteceram com os videogames, a música disco e o heavy metal, com que a situação atual com as mídias sociais é comparada por quem não acredita que haja um prejuízo coletivo, existe um corpo crescente de evidências que liga o contexto atual a pioras em saúde mental, desinformação, capacidade de foco e aprendizado, entre outras questões graves.

Não é só com as crianças e jovens - os mais velhos também estão tendo problemas. A BBC falou recentemente sobre como o uso problemático das telas e mídias vem afetando também as pessoas de mais idade, cruzando outras pautas contemporâneas como a solidão e o etarismo.

A economia da atenção, uma marca dos tempos que vivemos, mostra sinais evidentes do preço humano que cobra.

A expectativa de que melhoras e ajustes possa acontecer voluntariamente é, na melhor das hipóteses, ingênua. A piora proposital das plataformas, agindo em benefício próprio e muitas vezes na direção oposta aos interesses e preferências dos usuários, encapsulada na ideia de ensh*ttification (nosso texto mais lido do ano passado), é simplesmente o estado das coisas hoje em dia.

Enquanto isso, na Sala da Justiça…

Com tudo isso acontecendo, qual foi a última ideia genial da Meta? Desenvolver uma ferramenta para a criação de “usuários virtuais”, pessoas que não existem de verdade, habitando as plataformas da empresa e postando autonomamente. Quando essa ferramenta foi discutida em um artigo recente do Financial Times, os perfis viralizaram (por conta de preocupações previsíveis com spam e falsidade ideológica) e a reação do público foi tão tão ruim que eles tiraram os experimentos do ar quase imediatamente..

via 404media

A consciência já chegou nas massas

Não são só os estudiosos das transformações da sociedade que estão vendo com maus olhos o que está acontecendo. Uma listinha com alguns sinais:

Comunicação e marketing ainda estão em negação

"É difícil fazer um homem entender algo quando seu salário depende de ele não entender"

Upton Sinclair

Parte das indústrias de comunicação e marketing continuam em negação, em parte reafirmando os aspectos positivos das mídias (que sem dúvida alguma são vários e importantes!) como se eles de alguma forma diminuíssem ou fizessem desaparecer os negativos.

Ainda tem muita gente presa nas deflexões clichê.

O papinho mole de “não é sobre tecnologia, é sobre pessoas” não cola. Fazendo um paralelo, qualquer produto físico que cause problemas a seus consumidores, mesmo que seja em uma parte pequena, acaba alterado ou retirado do mercado - alguém lembra das balas Soft? Manter as pessoas rolando feed o máximo de tempo possível é sabidamente uma métricas principais de sucesso das plataformas e é algo que beneficia só a elas.

Responsabilizar indivíduos pelo bom ou mal uso tem um limite, em particular quando sabemos que nem todas as pessoas tem a mesma maturidade e capacidade de julgamento ou que realmente existe a possibilidade de que se desenvolvam relacionamentos mais problemáticos com as plataformas.

A gente já não viu esse filme antes?

Nenhum crescimento dura para sempre

É certo que as mídias não vão continuar crescendo indeterminadamente. Olhando não só os dados de crescimento global, mas também os de penetração, fica claro que quem está puxando o grosso desse crescimento são os países em desenvolvimento. Os números já são bem altos no mundo desenvolvido e é possível que já estejamos bem próximos do topo, se a gente assume que quem quer usar as plataformas provavelmente já usa - não parece ser uma questão de impossibilidade financeira ou técnica de acesso.

Mesmo a tão celebrada economia dos creators vai chegar a um teto eventualmente. Já falamos antes por aqui sobre como foi transformador para a juventude de hoje ter possibilidades de carreiras bem remuneradas e glamourosas com peneiras muito mais largas do no esporte ou na música profissional, tão aspiracionais para as gerações anteriores.

O problema é que o acesso a essas oportunidades, ao contrário do que vendem os “batedores de bumbo” dessa economia, é um jogo de soma zero: se todo mundo quiser ser creator (e no Brasil e nos EUA, muita gente mesmo quer), não vai ter nem audiência nem dinheiro suficiente para que todo mundo que quer ter uma carreira viável por esse caminho. O que acontece com as cidades do ouro quando os veios secam? Será que a quantidade de vendedores de pá (nesse caso, quem ensina a produzir / engajar / etc.) já não é uma pista?

Será que já não estamos caminhando para uma situação comparável com a do day trade, em que é sabido que a maior parte dos indivíduos perde dinheiro ou consegue tirar muito pouco, mas que a crença de estar acima da média (eita, Dunning-Kruger!) e a promessa de “dinheiro fácil” continua atraindo mais e mais gente?

Nos mercados físicos, é mais fácil enxergar a saturação quando ela acontece - é só lembrar das paletas mexicanas. No digital, é mais complicado, mas alguns sinais sutis já estão aparecendo:

Os rebeldes contra atacam

via Giphy

A contracorrente está se consolidando. Múltiplas iniciativas vem surgindo a favor de mais tempo offline, de redescoberta ou ressignificação de formas analógicas de se fazer as coisas, de incentivar as pessoas a estarem mais presentes no momento e menos no registro, e mesmo de algumas mais escancaradamente anti mídias sociais e as dinâmicas que elas incentivam. Algumas delas:

  • A ressaca dos apps de relacionamento (também estão passando por ensh*ttification!) e uma busca por caminhos alternativos para conhecer gente e colocar a vida afetiva em dia

  • O surgimento e sucesso de serviços como o Timeleft - que organiza jantares entre desconhecidos usando curadoria algorítmica para dar match entre os convidados e ganhou escala global - e outros que usam o digital de alguma forma para levar as pessoas para experiências únicas no mundo físico ou criam espaços 100% desconectados, como o Offline Club de Amsterdã, descrito pelos fundadores como um retiro do mundo digital onde as pessoas retomam as interações cara a cara, que com o crescimento inesperado já prepara uma expansão global.

  • A política anti câmera na vida noturna: não é novidade, mas tem se espalhado para outros lugares do mundo

  • A volta das revistas impressas que ganhou muita força no ano passado, em alguns casos em edições menos frequentes: de Life, Elle e NME nos EUA passando por Capricho no Brasil

  • O interesse ampliado em aparelhos não conectados: câmeras digitais dos anos 00, vinil, dumbphones, etc.

  • Como uma resposta talvez tardia à horda de oportunistas e charlatães espalhando desinformação em benefício próprio em diversos campos de conhecimento, mais e mais divulgadores científicos e autoridades em suas áreas de conhecimento estão se arriscando a produzir conteúdo até para retomar o controle da narrativa.

Se a cultura dominante hoje é digital e muito pautada por nossa relações com as mídias sociais, será que estamos presenciando o surgimento de uma contracultura fundamentada em valores opostos?

via Giphy

Alguns sinais de direções futuras e desfechos possíveis, pensando em impactos amplos:

Politica e legislação

A pauta de restringir o uso ou tentar proteger crianças e adolescentes dos efeitos nocivos das mídias é bastante transversal e mesmo nestes tempos tão polarizados, surpreendentemente bipartidária. Outros aspectos como identificação individual, verificação etária e responsabilização criminal também estão em discussão. A massa crítica legislatória já chegou em vários lugares do mundo. Muito do que é criado em países diferentes abre precedentes e pode causar um efeito dominó - a influencia da GDPR sobre a LGPD é um ótimo exemplo dessa dinâmica.

Economia e ambiente de negócios

  • Uma grande lacuna está aberta para plataformas que proponham alternativas aos modelos de hoje. O Bluesky já conseguiu capitalizar parcialmente nessa onda, construído em cima da descentralização, algoritmos personalizáveis e feed cronológico. Nos EUA, Frank McCourt, um possível comprador da operação local do Tiktok, está envolvido em um projeto de transformar as redes sociais em algo descentralizado, com mais controle sobre os dados que são compartilhados e os conteúdos que são consumidos chamado Project Liberty. O plano dele para o TikTok seria ficar com os usuários e com a infraestrutura mas deixar o algoritmo original para trás.  A mudança principal seria que as pessoas poderiam escolher o que querem ver e o que estão procurando, mudando do foco de hoje que é a atenção para o foco na intenção - uma mudança que pode ser tão legal para os usuários quando para as marcas que vendem na plataforma. O fosso nesse caso é só o efeito rede - e se a velocidade de adoção de algumas plataformas mais recentes como o TikTok servem como referência, talvez ele não seja tão profundo assim. Até o crescimento do Reddit, onde os perfis são primariamente anônimos e as discussões acontecem por texto em grupos dedicados a assuntos específicos, sugere espaço para caminhos fora do feed infinito de vídeos selecionados por algoritmos.

  • Estratégias de mídia e comunicação que não sejam só ou fundamentalmente baseadas em social media devem ganhar importância, haja visto a presença crescente de marcas 100% digitais como Airbnb, Google e Netflix em TV, mídia externa e outras que gurus “mataram” nos últimos anos. Com a mídia digital ficando mais cara e pirâmides etárias ficando mais concentradas tanto em volume quanto em renda em públicos menos presentes ou menos ativos nas redes, conseguir cobertura máxima vai requerer mais diversificação. Será que chegou a hora de uma volta do crossmedia “raiz”, pensado de um jeito que leve isso em consideração?

  • A economia das newsletters e outros formatos de conteúdo que não tenham que passar pelo pedágio dos algoritmos caixa preta, muitas vezes mais profundos e construtivos do que os Reels típicos, devem continuar ganhando importância, até por sua capacidade de formar comunidades ao redor de interesses específicos.

Cultura e Sociedade

O termômetro da opinião pública sobre as plataformas, de acordo com muitos estudos, é cada vez mais crítico, ainda que a maioria veja e valorize os positivos. Se a consciência dos aspectos negativos é ampla, é razoável esperar um uso mais intencional, pragmático e dosado.

Quando a gente está reavaliando nossa relação com qualquer coisa que percebemos que nos faz mal, mas nos dá prazer (doces, álcool, cafeína, psicoativos de forma geral, etc.), algumas estratégias são recorrentes. Pensando nisso, algumas formas como esse consumo poderia ser repensado:

  • Redução de danos - manter o consumo mas pensar em estratégias que diminuam os efeitos indesejáveis, como por exemplo eliminar plataformas e conteúdos que provocam emoções negativas

  • “Um pouco de salada, um pouco de droga” ou “fritness” - compensar comportamentos mais hedonistas e menos saudáveis com (super)compensações em outros aspectos da vida, então se comprometer com o consumo de conteúdos mais construtivos ou atividades mais produtivas ou saudáveis sem deixar a diversão de fora.

  • O clássico da galera dos 30: reduzir quantidade e aumentar qualidade - transformar esse consumo em ritual, diminuindo ou eliminando os conteúdos percebidos como mais danosos e substituindo por coisas de valor e qualidade percebidos mais elevado.

  • Abstinência completa - no geral uma saída mais extrema motivada por ideologia ou escolhida por pessoas que realmente não conseguem ter relações equilibradas com a coisa

Tecnologia

Mas e agora?

Especialmente depois do último anúncio do Zuck, tanto a incerteza quanto as ameaças à segurança das marcas são bastante altas. Apostar que as coisas vão continuar funcionando da mesma forma, com a velocidade da transformação e deterioração do contexto, parece uma péssima ideia. É hora de equilibrar busca por atenção a todo custo com um cuidado maior com como essa atenção vai ser recompensada. Mas temos a chance de, sobre estes desafios, construirmos juntos um contexto que seja mais saudável para todos nós.

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